terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Uma embarcação no mar
A tempestade que desaba
As lágrimas que inundam.

Gritos na praia
Silêncio no mar
Demasiado silêncio.

Barcos no mar
Gaivotas na areia
Não ousam.

Vagas esbranquiçadas
O vómito do mar
Que engoliu homens.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Uma cesta de papel
Cheia de histórias
A embrulhar maçãs

Pontas de cigarro
Incendeiam o chão
Das folhas agonizantes

O pescador apaixonado
Persegue a presa
Até ao fundo do mar

Noites frias
Despedem os sem abrigo
Das suas sombras

O caminho é longo
O mar ao longe
Nunca se cala

Faz muito vento
As árvores apavoradas
Batem os ramos e partem

A espiral de vento
Leva os telhados
E todas as certezas
Pintaram o muro de branco
A bicicleta passou veloz
E raspou.

O muro protestou
Era branco não riscado
A bicicleta protestou
Era azul metalizada.

Passam testemunhas
Que começam a discutir
A parede queixa-se
Da bicicleta riscada
Por sua vez angustiada
Na sua pele maculada.

O culpado quem seria
De tanta desventura
O Homem que pinta o mundo
Ou quem nele se aventura?
Vagarosamente
Os dias passam.

Há risos pelos caminhos
Crianças nas escolas
Ou piadas de rapazolas
A rua enche-se de cor
É inverno mas as flores espreitam

E há o frenesim dos estádios
Os gritos histéricos da multidão
As praças cheias de gente
Os centros comerciais

E os dias passam
Vagarosamente
Indiferentes
Como os rios.

Quando chegam as tempestades
As águas
Devoram as margens.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Todos os dias sentado nas escadas
Jornal na mão um olhar distante…

Logo ao Sol nascer
Sentado nas escadas
A ler o jornal
Indiferente a quem sobe e a quem desce
A quem olha e não olha

Todos os dias
Excepto quando chove
Não lhe conheço o refúgio
Dele e do jornal
Quando chove…

Ele e o jornal
Nas escadas frias
Dum Inverno de solidão.
Pintam as ruas de cores garridas
Mensagens de cor em paredes esburacadas
Palavras ambíguas e distraídas
Disfarçam gestos de raiva e interrogação

As paredes pintadas pelas ruas
Com grandes traços a conter enormes monstros
Apelam ao olhar pedem explicações
A quem passa todos os dias sem parar

Correm miúdos de pincéis nas mãos
Escapam-se dos que vigiam dos que perseguem
Procuram o refúgio nas paredes
E pintam nelas as palavras onde se escondem
E espreitam…

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Espero um pouco à porta da rua
Passam velozes muitas vozes
Passam velozes muitas buzinas
Passam velozes vizinhas
À porta de todas as vitrinas

Por cada coisa que passa
Abro a boca fecho a boca
Veloz sem nada poder dizer
Nunca há tempo para alguém responder
Passam velozes todas as vozes
À porta da rua um vendaval

Tento ser rápido e antecipar-me
E começo a gritar
Quem vem longe olha
Mas veloz vai-se o olhar
Passam velozes os que olham
Nunca se fixa o olhar
À porta da rua espero
Sem nunca ninguém chegar.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Num gesto repentino de poeta
Solta as amarras de todas as palavras
Que em catadupa jorram e invadem
O espaço em branco dum ecrã

E nesse espaço em que as horas não contam
O sono se vai mas os sonhos ficam
O que está para além de todas as palavras
Aflora e espreita tímido inquieto

E no jardim imprevisto das palavras
A flor mais singela desabrocha.

domingo, 14 de novembro de 2010

Pintaram as caras
Riram ao espelho
Correram pela cidade
Tocaram às campainhas
Assustaram as vizinhas
Espreitaram pelas janelas
Arrepiaram as donzelas.

Ao fim do dia
Puxaram as máscaras
Mas a tinta não saiu…

Olharam assustados
Viram muitos traços
Um riso de palhaços
Uma embarcação às cores
Deambulando pelo rio
Sem destino
A correr pelas ruas
A encalhar na indiferença
Dos que fugiam
Dos que troçavam
Dos que não olhavam.

Caras pintadas
De todas as cores
Só têm lugar
Ao pé das flores!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Uma página dum livro por ler
E o tempo passa
E a página à espera…

Um grande história
Por ler
O tempo passa
E a página
Esquecida no meio do livro
Ficou
Como as areias do mar deixadas em terra
Como os grãos de poeira que o vento esqueceu
Longamente à espera
De outras mãos
Outro olhar
Outra curiosidade
A história é importante
Como todas as histórias
Em páginas de livros
Mas tem que esperar
Como as sementes
Esperam
Para desabrocharem em flor.

domingo, 7 de novembro de 2010

Raios de luz

Raios de luz
A intensidade do mundo a despertar o pensamento
A incendiar as ideias
Tornadas labaredas
Que atravessam o mundo
Como a luz
Como o fogo
Vitais e estranhas
Porque alienígenas
Mas omnipresentes em nós e fora de nós.

Raios de luz
Não há óculos que protejam
Do grande Sol que nos inventou
Para se alimentar
Com os nossos pensamentos
Em labaredas de delírio.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Pedras

Um mundo povoado de pedras!

As que aqui existem
As que noutros planetas se adivinham
As que em fogo atravessam o universo
Não têm qualquer poder ou ambição
Limitam-se a estar com a eternidade no olhar
Não revelam segredos
Não questionam segredos
Deixam-se simplesmente abraçar.

As pedras espalhadas no Universo
São as mensageiras dum amor que ninguém decifra.

sábado, 30 de outubro de 2010

Caminhar sob a força da chuva
Os pés a desfazer a lama que enleia
Os olhos molhados e ameaçados
Pelo vergastar dos pingos e do vento

A paisagem diluída em chuva
Num céu negro turbulento e agitado
Caminhos revoltos pela água em torrente
Pelos montes veados pastam

E caminhamos alienígenas entre os montes
Embarcados em mundo encharcados em natureza
A ligação entre a lama e as nuvens
Entre o palpitar da terra e o que a transcende.
No meio da festa
Olhou em volta
E não conheceu ninguém
Num desespero de solidão
Correu
E tropeçou em todos que corriam
Mas não encontrou ninguém.

E a festa era ruidosa
Os ouvidos trepidavam
Nenhuma palavra tinha alcance
E sentiu-se só
E correu
A música levantou barreiras
E dançou num frenesim
De fuga
Mas não encontrou ninguém.

A festa foi o outro dia
Deambulou desde então
Mas não encontrou ninguém.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Pipas de palavras apalavradas
Tantas vezes apalermadas alarmadas
Povoam pastam pavoneiam-se
Pelas praças pelas ruas pelas desgraças

Palavras aos molhos molhadas desbotadas
Inundam afogam alagam alarmam
Lagos a transbordar palavras como as nuvens
Catadupas tempestades florestas derrubadas

Palavras anarcas descontroladas enlouquecidas
Arrasam os campos destroem as sementes
O que resta são troncos de ideias desfeitas
De encontro às rochas a reinventar significados.
Recados sussurrados cochichar de segredos
Alguém contou uma história e desapareceu!

Rastejam pela cidade histórias invasoras
Subversivas perigosas explosivas
Insinuam-se nos bancos dos jardins
Penetram por debaixo das portas
E infiltram-se nos pensamentos adormecidos.

Estão por todo o lado as histórias
Vieram de onde a memória não recorda
Perigosas para o poder que as não controla
Desafiadoras para as mentes que as ignoram.

E os que nelas acreditam falam baixinho
As palavras escorrem numa lentidão que é fermento
Contra todos os poderes e vontades
As histórias preparam-se para transformar o mundo.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Pisca tímido o olhar
Pressente ser seguido
Por outros olhares
Ser descoberto na intimidade
Da procura curiosa de respostas
Às questões que todos sabem
Mas não convencem
Respostas ditadas por livros da escola
Ou por discursos eruditos na televisão.

Pisca incomodado o olhar
Pelo nevoeiro que se levanta
Pelo pó que se agiganta
Provocado pela correria assustada dos que passam
Sem ver
Mas interrogam quem interroga
Quem põem em causa
As verdades das escolas
E dos discursos.

E o olhar em gestos cautelosos
Varre os livros os dias os velhos
O céu azul as estrelas
As quedas de água
O pôr-do-sol no lago
A noite escura.

E antes de adormecer
Descarrega o que é novo
No mais profundo do seu ser
Onde os poemas germinam.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Uma serpente enleia-se no candeeiro da cidade
A luz torna-se mais brilhante e encandeia
Dois enormes olhos carregados de luz
A terra revoltada espreita e questiona

E as serpentes invadiram as cidades
A noite dos bosques agora noite dos pesadelos
Olhos brilhantes a anunciar tempestades
A luz dos candeeiros tornada inútil

Na praça central um candeeiro muito alto
Cá em baixo lutam homens e serpentes
Aquela luz lá em cima é a última chama
Dos que se julgaram um dia deuses

As serpentes desalojadas dos bosques
Marcharam para a cidade
Subiram aos candeeiros
Engoliram a luz e reinaram.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Brincam crianças na relva do jardim
Uns pássaros esvoaçam sobre o oceano
Uma onda enorme aproxima-se
Passeia no lago um par enamorado
Pela trela um cão refugia-se do mundo
Um canário na gaiola espreita
Cantam nas ruas conversas despreocupadas.

Cruzam-se histórias de mar e terra e céu
Desencontro de vontades encontros de acaso
No meio dum quadro um enorme olho
A vigiar os que passam despreocupados.

sábado, 9 de outubro de 2010

Notícias

Cidade cinzenta
Uma chuva miúda e vento
Nuvens gigantes
E árvores de folhas amarelecidas.

Outono na cidade e no espírito
Os passos arrastam-se mais lentos
A pressa pelas notícias não é nenhuma
Na atmosfera deprimida do quotidiano.

Outono dos dias mais pequenos
Das noites que não chegam a ser dias
Porque os olhos se recusam a abrir
Porque não há pressa pelas notícias.

Porque são cinzentas deprimentes
Como o tempo dum inverno que ameaça
A chuva que cai as nuvens que cercam
E as notícias que nos esperam.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Encruzilhadas

Encruzilhadas
Todos os caminhos convergem
Mas no olhar teme-se o desconhecido
Exactamente o caminho que não estava na encruzilhada

Os passos hesitam
A música é um toque desesperado de tambores
De guerra de feira ou de feitiço
Toda a dança é pela noite dentro
Quando as luzes se apagam
E outros caminhos se revelam.

Encruzilhadas
A solução é fechar os olhos
E esperar por novo dia.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Escrever sobre nada
Sobre o que não deixa marcas
Mas subtilmente subtrai momentos à vida.

Escrever sobre os pequenos gestos
As conversas superficiais que se mantêm
No jogo de todos os dias
Que assistem ao lento desenrolar do tempo.

Escrever nos intervalos de não fazer nada
Que se possa contar ou recordar
E descobrir nas palavras inventadas
O devir inexorável da vida.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Ressoam as flautas nas montanhas Andinas
Tapete mágico transportado a música
Que nos conduz à profundidade da terra
Onde as serpentes espreitam
Às florestas húmidas e silenciosas
Onde os pumas reinam
Ao cimo das grandes montanhas
Onde os condores vigiam

Ao som das flautas
Descubro o caminho dos deuses
O grande Sol e seu filho Pacha Kamac
Refugiado nas pedras dos templos
Altivas eternas misteriosas

Tocam as flautas das montanhas Andinas
E o Sol à espreita no horizonte agradece.

domingo, 26 de setembro de 2010

Colibris

Tremem as flores
Ainda surpresas
Pelo beijo que já passou

As asas vibram
As flores tremem
O bosque arfa

Voos velozes
Vorazes vaidosos
A vertigem do êxtase

Mensageiros dos deuses
Segredam às flores
Histórias de homens.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Percorro inquieto o deserto sem fim
Um solo lunar numa aridez que não compreendemos
Os caminhos são pedras esquecidas
A areia e o vento os senhores dos dias

Todo o meu corpo se sente estranho
Nenhuma vida espreita nada que possa morrer
Confrontado com o silêncio árido do deserto
O corpo pressente o frio gelado do que é eterno

Mas o olhar é atraído o corpo agarra-se
O vento pára o horizonte dissolve-se
E o deserto por uma vez levanta-se e caminha
De mãos dadas comigo a descobrir o Universo.
No cimo da montanha avista-se o mundo
Mas o caminho é estreito e atravessa a floresta
Das escarpas imensas

Do outro lado há um templo
Sempre um templo a exigir o suor
De trepar sempre de encontro à chuva ao vento às ravinas

E uma longa fila de peregrinos da natureza
Caminha lenta sofrida exausta
Puxada por uma corda invisível lançada pelas montanhas.
Crianças vestidas de cores garridas
Lamas enfeitadas com laços
E uma enorme doçura no sorriso
A enlear em feitiço o turista que passa

E são mais umas moedas
E mais umas fotografias
E a lama parece que ri e a criança fica séria
Tem a noção exacta do que é o trabalho

Em cada ponto das montanhas encantadas
Onde se pode ver vales profundos e o céu tão perto
Correm pela estrada miúdos engalanados
Com a ternura da infância e um olhar que suplica.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Cenários de "Teta Assustada"

Numa aldeia perdida em montes de nada
Numa escadaria a terminar em nada
Feito de uma amálgama de latas e gente
E do feitiço enlouquecido da vida

Um rodopio de casamentos e morte
De angústia e alegria desmedidas
Os dias passam áridos secos estéreis
Cheios de sonhos pequenos e inúteis

Passam carros ao fundo e há jardins
Mas no cimo do morro
No cimo das escadas que não terminam
Resplandece em exposição a humanidade.
Canta um pássaro
No silêncio da noite
Oiço as estrelas

Dançam luzes
Junto ao mar
A magia da noite

Recorte negro
Na noite escura
Refúgio dos sonhos

Por caminhos escuros
Desço e subo
A confiar nas estrelas

Ao fundo uma aldeia
Miríade de luzes
A ofuscar o céu

terça-feira, 6 de julho de 2010

Asas quebradas

Asas quebradas
Junto a uma qualquer pedra
Num monte sem ninguém
Uma ave arrastava-se

O céu estava longe
A terra era dura
As sombras distantes
E a fome crescia

As asas arrastadas deixavam marcas
Sem sentido
O vento levava-as
A chuva levava-as
Nenhuma história ficava para contar

O olhar da ave era turvo
O céu estava longe
As asas arrastavam-se
O céu estava longe

O olhar da ave era de espanto
Abriu as asas
E partiu sem destino

Pontos e vírgulas

Pontos e vírgulas
Momentos de suster a respiração
Os pensamentos em catadupa
Atropelam-se
E os dedos suspendem o movimento

E a história continua
Mais refinada mais certeira
Mas cheias de pontos e vírgulas
As curvas são necessárias
O destino não deve ser exposto
A qualquer curiosidade voyeurista.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Moscas

Uma mosca atravessa-se no meu caminho
Na velocidade frenética das pesquisas
Procura curiosa em todos os recantos
Em zig-zags sem sentido para o meu olhar

A mosca voa pelos esconderijos da casa
Pousa em todas as coisas que lhe despertam a atenção
Um corpo ávido quiçá um espírito ávido
Na procura incansável por tudo quanto possa ser sustento

Voam no meu espaço moscas ao acaso
Com o olhar distraído sigo os seus trajectos
Infatigáveis insaciáveis até à teia ou mata-moscas.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Peneda

Montanhas de estreitos caminhos ladeados de pedras
E de água que escorre em cada esconderijo mais apertado
Música ébria de água e pedras a rolar em pequenos riachos
No meio da admiração silenciosa dos que assistem

E o caminho sobe por entre rochas agrestes
E desce por entre vegetação agreste
Mas ao fundo mesmo ao fundo corre um riacho
E os pés dançam na música do seu rodopio

E libertos das mochilas pousadas nas sombras
Sentados em pedras num silêncio de quem espera
A montanha a água as pedras e o verde intenso
A transbordar do mundo para dentro de nós.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Duas pessoas encontraram-se na rua
Olharam-se reconheceram-se?
Aquela cara que vi não sei onde
Teria visto? Teria existido antes?

Hesitaram um pouco
As mãos fizeram um leve trejeito de se estenderem
Os lábios entreabriram-se
Mas as palavras não saíram
Que havia a dizer?

Os passos apressaram-se
Os olhares desviaram-se

As histórias antigas
São para guardar em gavetas fechadas
Cheias de fotografias.
Um homem vulgar caminhava na rua.
Veio um autocarro e levou-o
A rua ficou mais vazia
Mas o mistério tornou-se mais denso

Para onde partiu?
Que destino teve o espaço que ocupou
E o seu odor onde ficou?

Partiu no autocarro que se perdeu ao fundo
As ruas permaneceram e os outros passos apressados
Ninguém reparou excepto um pedinte
Testemunha viva daqueles passos agora ausentes

Partiu sem deixar sinais
Foi de autocarro talvez para todo o sempre
Naquela cidade agora mais vazia
Os autocarros partem e chegam sem cessar.

sábado, 19 de junho de 2010

Na praia

Na praia deitados na areia ao calor do Sol
Corpos quentes despidos ardentes
As toalhas tocam-se enleiam-se transformam-se
Os braços estendem-se as mãos distendem-se os dedos tocam-se

E o calor que abrasa transforma-se em corrente
E os corpos tremem agitados febris
Todo o Sol do mundo transformado em desejo
A escorrer líquido por corpos sequiosos

Dias de praia de entrega de volúpia
Areia e mar sol e aragem e uma toalha
Sobre a toalha corpos estendidos
E sobre os corpos gotas de suor.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Procurei naquele olhar um brilho que sonhei
E não encontrei e procurei noutro e noutro
Uma luz antiga escondida num recanto da memória
Um pedaço de passado aprisionado

Onde está o dono desse olhar
Não existe por certo pois foi ontem
E em cada novo instante somos outros
Excepto os que nos sobressaltam nos sonhos.

Adeus passado guardado em fotografias
Em flashes de vida em encontros de um dia
Tudo o que somos é hoje e desaparecerá
No exacto momento em que amanhece.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Junto ao lago à sombra do arvoredo
Uma toalha estendida e uma entrega à serenidade
A ondulação da água crepita
Como o vento breve a embater nas folhas

Junto a nós passam barcos
Velas em riste velozes e decididos
As águas ondulam os patos olham
Nenhum adeus no ar porque somos paisagem

À beira do lago refúgio de encanto
Um banho um piquenique e um momento de sonho
Verde e pedras água e vento
Toda a natureza a embalar-nos no seu abraço.
A mesa estava posta
A um canto um pedaço de fruta começada
E um pássaro que não pára de cantar
Indiferente
A tudo indiferente
Num mundo da dimensão duma gaiola

Ou duma cozinha
Ao lume a panela estava a entornar
A chama estava viva
Mas esquecida
O pássaro cantava
Indiferente

Ao canto uma mesa
E alguma cadeiras
Todas vazias menos uma
Que ninguém olhava
Não havia ninguém para olhar
Excepto o pássaro
Que se limitava a cantar

Em cima da mesa pratos vazios
E um copo com água
E uma jarra de flores sem água
Murchas de alguns dias
Esquecidas
Excepto do pássaro
Que cantava para elas
O sonho impossível
De as ter entre o bico e as amar

Na cadeira que não estava vazia
Numa quietude rodeada de solidão
Um homem sem idade balouçava
Todo o espaço que o rodeia feito foguetão
E o canto do pássaro
O guia para a longa viagem.

sábado, 22 de maio de 2010

Olho para as montanhas
Que crescem em cada gesto de vontade que teima
Lá em cima inalcançáveis todos os sonhos
Guardados em ninhos de aves que habitam os pesadelos

E pego em cordas em botas e numa vontade forte
E parto para a montanha olhos no cimo e o desejo
As aves olham temerosas mas decididas
Que ninguém se atreva no mundo dos sonhos

Longe da cidade ao fim de estradas sem fim
Contemplo as montanhas e arrasto cordas
Condenado para todo o sempre a olhar
Na contemplação distante de sonhos que ninguém alcança.
A manhã agita-se
O dia nasceu igual a todos
Um Sol que surge sempre fiel
A que se foge numa qualquer sala
Iluminada à custa de múltiplos sóis sem vida

A cidade espreguiça-se nos carros matinais
No burburinho das lojas a abrir
Dos pequenos-almoços ainda não tomados
E das pombas sempre à espera do milho do céu

E a manhã cresce solta pelas ruas
Irrequieta arrebatada rebelde
Espreita pelas janelas desperta consciências
Invade os escritórios liberta os espíritos.

domingo, 16 de maio de 2010

Palavras paixão
De noites arrebatadas
Libertam as histórias
De todos os corpos
Que um dia se entregaram

São palavras ébrias
Que não sabem o que dizer
Em ziguezagues de sílabas
Encontram no murmúrio
A expressão plena

Só o grito interior
Alcança o longínquo universo
Para onde a paixão nos arrasta.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Aldeia de Broas

Na aldeia abandonada
Um banco de pedra
Ainda espera

Estranhamente uma lareira
Está acesa
Na casa vazia

Num canto verde
Um poço fundo
Guarda as mágoas choradas

Paredes derrubadas
Sobre o lagar do vinho
O néctar ainda paira.

As casas que olham
Os montes que olham
Um namoro que permanece.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Faz frio na Primavera
Neva em países imprevistos
Vulcões inquietos acendem fogueiras
O fumo das chaminés pára aeroportos

Cidades inundadas em banhos de lama
A terra que treme o mar que se agita
O vento que arrasa o fogo que devora
Todo o planeta agitado transpira

O pensamento paira impávido a olhar o azul
Indiferente aos corpos ameaçados.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Quando te vejo lutar em cada dia
Por coisas vagas só relativas a esse dia
Sinto pena
O mundo é muito mais profundo!

Quando te vejo sofrer em cada dia
Pelas coisas pequenas que irritam à flor da pele
Sinto pena
O mundo é muito mais profundo

Quando te vejo ansiar em cada dia
Pelas coisas fugazes dum prazer efémero
Sinto pena
O mundo é muito mais profundo

Quando te vejo desesperar em cada dia
Pelas coisas que não foste capaz de fazer
Sinto pena
O mundo é sobretudo sonho

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Dançou com o vento
Num gesto de amor
Ardente

E rodopiou enlouquecido
No cimo duma torre
Numa vertigem de desejo

Olhou os pássaros
E ao fundo o mar
E sentiu paixão

Pelo que mexe
Pelo que vive
Pelo que é frágil

A fragrância duma cor
Arrastada pelo vento
Abraça-o e segue

E ficou a dizer adeus
Numa montanha qualquer
Para o grande amor que partiu.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Pontapeei uma pedra
A parede levou uma pancada
Mas não abriu nem uma fenda

O pé ficou dorido
O sapato desfeito
A parede altiva

Soquei a parede
Penso que estremeceu
Mas não abriu nem uma fenda

A mão ficou dorida
Os dedos em sangue
A parede altiva

Olhei para a parede
Com a força do sonho
E a parede desfez-se.
Salta para o palco imaginado
E abre os braços a encenar discursos
Só ouve palmas numa plateia que ferve
Na ânsia de se descobrir nas palavras que inventa

E o discurso arrasa todos os sonhos
Chama pedras às pedras dor à dor
Mas as pessoas aplaudem libertas
As palavras ouvidas são as que desejavam gritar

No palco em pé não pára de gesticular
Apóstolo mensageiro ou louco
Todos os que passam sentem arrepios
Ao descobrirem-se reflectidos no palco.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

O tempo passa
Os relógios quebram-se
Ficam os rios

Pedras deslizam
A montanha chora
Lágrimas de terra
Jacinta, 27 anos, cega, surda-muda

Olhar perdido na profundidade da noite
Todas as estrelas estão ausentes todo o sentido
Todo o canto está ausente todo o sentido
Apenas o ser vibra com o arrepio da aragem

Absolutamente perdida num universo de mistério
Há corpos que vibram que tocam que chocam
Sinais de que se não está absolutamente só
Outras galáxias outros sóis outros seres

Está no centro de tudo que se agita e treme
Que emite sinais que são códigos que são ordens
Os deuses estão presentes no cheiro na vibração
Surda aos gritos cega aos gestos mas desperta ao chamamento
O oceano à minha frente
Uma criança a brincar

A areia
Na praia ou no deserto
Afunda

Todo o meu ser se afunda na areia
Os passos
O olhar
O pensamento

O oceano à minha frente
Uma criança que brinca
Com um moinho de vento

À beira-mar faz sempre vento
E pelo relevo das dunas
O meu olhar ondula ao ritmo do mar

Uma criança brinca na praia
No balde esconde o mar.

sábado, 3 de abril de 2010

Todas as vitórias duram pouco
Instantes de glória fragmentos da vida em júbilo
Depois vem o mar a matéria negra invisível misteriosa
Em que se navega à procura de novos desafios

O homem não descansa em feitos consumados
Tem a ânsia do além do que está longe e se persegue
É o desconhecido que é a mãe de todas as vontades
Da insaciável avidez de viver na aventura

E até a morte é o derradeiro gesto do aventureiro.

segunda-feira, 29 de março de 2010

O desejo arde
Braços apertados
Atearam o fogo

Nas horas intensas
Transpiram os corpos
Confunde-se a alma

Gestos de amor
Geram palavras
Prenhes de êxtase

Pela janela aberta
Atiram-se as palavras
Que o beijo escreveu.

Dança Sufi

Enleados em gestos
Numa brancura que dança
Bailarinos rezam

Vozes acompanham
Repetitivas monocórdicas
Mas eficazes

E os passos rodopiam
As cabeças inclinam-se
As mãos estendem-se

Os tambores tocam
Portas imaginárias que abrem
A unir mundos.
Olhei em frente o mar
Tinha saudades do mar
Das ondas que crescem e partem
Para onde nenhum olhar consegue chegar
Saudades das praias
Da areia quente e molhada
Dos pés húmidos e livres
mais perto do pulsar da terra
À beira do mar

Olhei em frente o mar
Peguei num barco
E mergulhei na floresta

Todo o silêncio é ondulação
A que nunca teve origem
Penetra em mim e continua

Olhei em frente o mar.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Há um segredo no fundo de cada poço
Enorme saturado de palavras gritadas
Desabafos que nenhum homem pode ouvir
Nem o vento pode transportar

Está escuro na profundidade inalcançável
Nenhuma pedra ressoa nenhuma palavra ecoa
Há um monstro certamente indolente medonho
A alimentar-se das palavras que não podem ser ouvidas

É nas noites sem Lua e de estrelas encobertas
Que se escapam dos poços todos os monstros
A gritar aos ouvidos de quem se rebola na cama
Todos os pesadelos duma humanidade atormentada.
Deitado no chão
Procura não sabe bem o quê
Caiu de algum lado houve barulho
Ou então um estalido numa cabeça a estourar

Estica-se estende-se
Todos os recantos são vasculhados
Esqueceu o que procura mas a casa fica limpa
E o tempo passa sem mais questões

Debaixo dos tapetes
Num amontoado de pó sempre esquecido
Um papel aparece nas mãos
E está escrito.

Sentado no sofá adormeço a contar histórias.
Irritado bato a todas as portas
E as compainhas atazanam
A quem acode a elas e nada encontra
Porque os gestos são rápidos
A vontade de provocar e rir é grande
E a velocidade dos gestos ainda maior

Porque o que quero não encontro na minha rua
Nem na rua mais além
Nem na cidade que transformo em rebuliço
Estará longe ou perto
Vivo ou natureza morta
Belo ou feio
Mas será sempre uma enorme provocação!

E no campo na montanha
No rio no mar nas areias dum qualquer deserto
Em sonhos ou no precipício do real
Refugia-se invisível a quem toca a todas as campainhas
Seguro por saber que nenhuma porta se abrirá.

sábado, 6 de março de 2010

Palavras

Sabe bem gritar
Palavras de raiva
Em catadupa

Rajada de palavras
Atiradas ao acaso
Certeiras no alvo

Frases desencontradas
Encontram no poema
O destino que as unifica

Palavras de raiva
Precipitam-se em turbilhão
Na paz do oceano.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Segredos

Segredos
Gritam aos ouvidos
E pedem silêncio

Palavras ao acaso
Cheias de significados
Encriptados

A verdade foi escondida
Sob mil almofadas
E adormeceu para sempre

Procura respostas
Encalha nos segredos
Morreu junto à costa

É grande o silêncio
As palavras foram devoradas
Pelos segredos.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Para a Lucília



Uma borboleta não aparece do nada
Há um ninho perdido no mundo
Uma corrente de ar
E um desejo forte de viver

As asas batem
O chão ondula
Que histórias esconde?

No céu
Umas asas abertas
Passeiam interrogações
E um destino.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Simultaneidades

Voo de 2010
Para 1431
E num gesto ousado
Salto para 4646...

Para meu grande espanto
na mesma praça
Os mesmos rostos

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

As ideias estão confusas
perdidas nos naufrágios
ou nas torrentes de lama
A devorar sonhos e vidas

Procuro encontrar histórias
Que relembrem sorrisos antigos
mas entram pelo olhar dramas
Lágrimas dum mundo em sofrimento

E espero sentado a uma mesa
Que a tormenta passe.

Náufragos

Náufragos de embarcações frágeis
Atirados ao mar que se degladia
Nomes noticiados nos jornais
E esquecidos na tormenta do oceano

Lutavam com um mar que amavam
A embriaguês da conquista
Em cada onda que se vencia
Em cada passe de mágica dos remos

E desta vez foi o mar que venceu
O touro dá a volta à arena
Na praia homens enraivecidos
Preparam-se para mais um dia de faina
Sós na solidão de todos os casulos
Os germens que explodirão em vida
Arquitectam planos para novos mundos

Estão cegos a todos os pontos de luz
Nem o Sol brilha nem a Lua atrai
Livres de construir estrelas e sonhos
Eclodem trémulos dum qualquer ventre

E o Sol e a Lua e muitas mãos
Empurram lentamente seguramente
Os olhos entreabrem-se e descobrem um mundo
Que nunca sonharam.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Haiti

Um murmúrio
A voz que reza
Foi ouvida

Imóvel e só
Está morto
Até ouvir a mãe

Presa em escombros
Aos pés há mortos
Na cabeça um pesadelo

Crianças órfãs
Andam pelas ruas
Vagueiam pela vida

Têm medo os vivos
A morte escapou-se
Das ruínas

Paredes desfeitas
Um piano toca
Num último adeus
Enleado num hera
Trepa uma parede
E espreita

Do outro lado
Da longa estrada
Outra parede

Enleado numa hera
Alguém espera
E diz adeus

Os olhares cruzam-se
Os braços estendem-se
Os corpos estatelam-se

Cobertos de heras
Olhares errantes
Enlaçam-se.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Haiti

Os dias passam no túmulo negro
E a esperança resiste
À fome à sede à ameaça da morte
E espera

Ao longe numa distância absurda
Gritos que chamam máquinas que gritam
E o túmulo a mais terrível das fronteiras
A prender todos os sonhos de uma vida

No silêncio dum corpo que respira e dum coração que bate
Os lábios murmuram vagas orações
A noite e o dia fundidos no mistério
De uma pequena brecha ou estrela longínqua

E as horas e os dias passam...

No repente violento de um qualquer parto
Os olhos incendeiam-se de luz
E débeis os braços erguem-se para o céu
A abraçar a vida o mundo e a estrela que foi guia.

Haiti

Silêncio cortado de gritos
A terra deslizou nas entranhas
A humanidade abriu brechas
E os sonhos ruíram

E as lágrimas foram engolidas
Pela terra pela água suja por outras lágrimas

Uma mão aberta a brotar da terra
Uma flor desesperada um adeus
Os olhos tropeçam e precipitam-se
Na maré que cresce num oceano de dor

E os gritos em gargantas enrouquecidas
Atordoam o silêncio dos que estão adormecidos

Ao abrigo das casas feitas entulho
Em nichos apertados feitos túmulos
Corpos manietados remexem olhos
Na busca duma qualquer luz que seja vida

E um cão fareja enlouquecido com o cheiro a morte
Perdeu todo o sentido e todas a esperança se perdeu.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Jogo de cartas

Jogo de cartas
Na mão o destino
Que os outros desejam

Jogo de cartas
Reflectidos no olhar
Segredos escondidos

Jogo de cartas
Um baralho de acasos
Um caminho sem mapas

Jogo de cartas
Os acasos da vida
Na palma das mãos

Jogo de cartas
Na mesa a vontade
De jogar a vida

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Campo de refugiados

Brincam crianças
Caiem bombas
No jogo do assusta

Campo de ruínas
Uma bola de nada
É pontapeada

Gritos e risos
Fogo e fumo
Jogo das escondidas

Nos esgotos enlameados
Modelam bonecos
E dão-lhe banho

Saiem de casa
Correm pelas ruas
Regressam vivos

Olhares brilhantes
Troçam da morte
Amam o mundo

domingo, 3 de janeiro de 2010

Uma melodia ao longe
Num passo de dança
Levanto-me e corro

As vozes crescem
A orquestra delira
Paro esmagado

Passa uma ave
Oiço-lhe a vibração
Na melodia que me invade

Partem os músicos
As notas ressoam
Até à eternidade

"The Wrestler"

Em cima das cordas diz adeus
De braços abertos lança-se e voa
Para uma tranquilidade que o acolha.

Estava só no mundo dos que aplaudem
Quando se segue no fim do espectáculo
Ao frenesim dos gritos saudações
O silêncio devastador das ruas desertas

Corre desajeitado o gigante de todas as ovações
E pede um olhar uma palavra um gesto
As portas batem os sorrisos fecham-se
Todos os olhares são de dúvidas e adeus

As ruas estão desertas as crianças partiram
O corpo envelhecido estremece
Nos ouvidos os gritos da multidão
O verdadeiro único corpo que é carícia

E de olhos velados parte
Prepara os braços os punhos a mente
A multidão grita o peito abrasa os braços abrem-se
Em cima das cordas acena frenético

E diz adeus.